25/01/2025 às 16:50
O Memorial da Resistência de São Paulo, único espaço do país a salvaguardar um acervo sobre os atos de resistência a aparatos de repressão no Brasil, comemorou 16 anos de atividade nesta sexta-feira (24). Para marcar o aniversário, o museu, instalado no prédio onde funcionou por quase quatro décadas o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops/SP), preparou um mural para provocar reflexões bastante atuais.
A obra Este capítulo não foi Concluído (2024), de Rafael Pagatini, ficará em exibição no mural externo do museu. Para homenagear e honrar a memória de perseguidos políticos durante a ditadura civil-militar instaurada em 1964, com o golpe que derrubou o presidente João Goulart, Pagatini escolheu expor um painel de 14,2m x 4,5m composto por 72 páginas dos processos do Superior Tribunal Militar (STM) relacionados às violências praticadas contra tais pessoas, como retaliação aos questionamentos que faziam.
Para tornar mais pronunciadas as presenças das vítimas da ditadura, o pesquisador e docente gaúcho mostra as folhas de papel com itens como roupas e adereços. Essas páginas foram copiadas do projeto Brasil: Nunca Mais, que, com esforços coletivos de diversos segmentos, de militantes a figuras das igrejas católica e presbiteriana, preservou 1 milhão de páginas contidas em 707 processos do STM entre 1979 e 1985.
Uma das leituras possíveis conecta o painel ao livro O Processo, de Franz Kafka, escrito no contexto da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O romance serve de referência na medida em que também trata do assombro do protagonista, Josef K., a quem imputam algo que não sabe o que é e que por isso é levado a julgamento. A angústia, por não haver certeza do que serão o desfecho do julgamento e, portanto, seu destino e por ser vítima de uma justiça são algo que marca o livro e também identificado em períodos de regimes autoritários.
O painel integra a exposição temporária Uma Vertigem Visionária - Brasil: Nunca Mais, de 400 m² e curadoria de Diego Matos. Uma das seções oferece aos visitantes a oportunidade de ver obras da Coleção Alípio Freire, realizadas por ex-presos políticos como Artur Scavone, Ângela Rocha, Rita Sipahi, Manoel Cyrillo, Sérgio Ferro, Sérgio Sister e o próprio Alípio Freire, durante a permanência em presídios de São Paulo, na ditadura.
Segundo a diretora do Memorial da Resistência, Ana Mattos Pato, um dos pontos mais interessantes e relevantes a se notar é a natureza do material que serviu de base para o Brasil: Nunca Mais: documentos elaborados pelos próprios militares, agentes da repressão. "É uma documentação e, nesse sentido, irrefutável", diz à Agência Brasil, acrescentando que nisso o Brasil difere da Argentina, que também é retratada em outra exposição atualmente aberta no museu, de nome Memória argentina para o mundo: o Centro Clandestino ESMA.
Parte dos visitantes, diz a diretora, chega ao museu sem saber nada do Brasil: Nunca Mais, enquanto alguns já viram uma cópia impressa, mas, sem tê-la aberto antes, somente agora, pisando no memorial é que desvendam seu conteúdo. "O que noto das pessoas que vêm aqui é, primeiro, uma surpresa. Muita gente não conhecia, diz, ah, tinha na estante do meu avô, do meu pai, do meu tio. Um 'ah, já ouvi falar'. Mas esse 'já ouvi falar', quando você começa a conversar, vê que é uma memória distante", comenta.
"E isso me impressionou muito também, porque, se a gente for pensar, do ponto de vista dessa história, ela merecia um longa-metragem, ser conhecida, estudada a fundo, porque é uma história não só de uma coragem muito grande, mas, com pouco, se produzir uma reação de documentação única e um relato profundo da violência de Estado na ditadura. E, mais, um retrato da tortura como estratégia de coerção", emenda.
Uma das principais tarefas de que se ocupam as equipes do memorial é a coleta de depoimentos de pessoas que narram o que ocorria na ditadura. Com a exposição, tem sido retomada com mais intensidade. "É a primeira vez que muitas dessas pessoas vêm a público", salienta Ana.
Para a diretora, o silêncio prolongado até hoje é explicado por um pacto que se fez, a fim de não deixar ninguém vulnerável na época, mas também por um receio que ainda perdura. "Acho que tem a ver com o arquivo da militância, arquivos que foram criados, muitas vezes, para não serem encontrados. Tinham que viver na clandestinidade", pondera.
"E acho que muita gente também se envolveu intensamente, no período da redemocratização continuou com muito medo de falar, de dizer 'olha, eu participei', porque era fato, a vigilância continuou depois, no período da democracia. [Demonstra] o quanto essas pessoas são marcadas por esse receio."
A exposição Uma Vertigem Visionária - Brasil: Nunca Mais fica em cartaz até o dia 27 de julho, no Memorial da Resistência, em São Paulo. A mostra tem entrada gratuita e está aberta todos os dias (exceto terça), das 10h às 18h.
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