20/11/2024 às 10:29
Ele descobriu a história de Esperança Garcia, uma mulher escravizada no século 18 que escreveu de próprio punho denúncias e reivindicações, mais de um século antes da Abolição da Escravatura.
O professor se deu conta que não era um ofício de alguma autoridade com uma linguagem diferente, mas uma carta de uma escrava denunciando os maus tratos para o governador da época e para o administrador das fazendas.
“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal”. Esse é um dos trechos transcritos da carta. Mott, na ocasião, transcreveu letra por letra. Não havia como copiar nem fotografar.
O pesquisador recorda que colocou a carta dentro de um envelope grande e pardo e lembra ainda ter anotado para que o arquivo cuidasse bem da joia histórica. “A Esperança Garcia se tornou famosa. Foi feita até uma estátua. Depois, as pessoas disseram que a carta tinha desaparecido. Ninguém sabia onde estava. Chegaram a dizer que ela tinha sido enviada para Portugal. Não tenho a menor ideia de onde está”.
Outro historiador, o professor Mairton Celestino da Silva, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), esteve no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e também não conseguiu localizar o documento.
Segundo a assessoria de imprensa do governo do Piaui, em contato com a reportagem, existe uma mobilização para tentar encontrar a carta original, que foi extraviada “há muito tempo” já que teria sido arquivada de uma forma errada. Por esse motivo, os profissionais do arquivo público ainda teriam conseguido achar.
A comunicação do governo apontou que, na década de 90, havia uma política de liberação do documento para eventos. Em uma dessas exposições externas, o documento teria sido extraviado.
O documento escrito por Esperança Garcia garantiu a ela o reconhecimento como primeira advogada brasileira, naquela que seria uma espécie de pedido de habeas corpus movido pela trabalhadora. A decisão da homenagem foi de 2022 pelo Conselho Pleno da Ordem dos Advogados Brasil. Leia mais no site da OAB.
Segundo o que foi resgatado, ela trabalhava numa fazenda de jesuítas. “Depois que eles (os religiosos) foram expulsos, Esperança ficou sob a administração do feitor e foi contra esse feitor que ela reclamou e denunciou, dizendo: eu sou um colchão de pancadas”. O professor Luiz Mott prepara uma biografia sobre Esperança Garcia para o ano que vem.
O professor Mairton Celestino, pesquisador da história do século 18, recorda que o documento resgatado auxiliou os trabalhos da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI, que geraram o Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito. “A ideia não era só apenas formular o dossiê, mas também construir uma série de pautas sobre a escravização, como a inserção do negro e da mulher negra no interior da advocacia brasileira”.
A imagem desenhada de Esperança Garcia foi criada pela comissão da verdade piauiense. A respeito de tentar encontrar o documento, o professor da UFPI entende que é como procurar uma agulha num palheiro.
“Esse documento se constitui como uma peça fundamental para discussões do racismo, de como se estruturam as desigualdades sociais no Brasil e, principalmente, como esses sujeitos subalternizados reagem não só hoje, como historicamente ao longo das suas vidas”, diz Mairton Celestino.
O fato de, mesmo escravizada, Esperança Garcia, ter dito “não” foi considerado muito significativo. Ele entende os problemas trazidos pela carta bastante atuais: as violências do Estado contra o povo negro sempre estiveram presentes. “A história da Esperança Garcia é uma porta que se abre para nós da atualidade de que o povo negro brasileiro sempre reagiu a todas as formas de exploração”, diz o professor da UFPI.
O pesquisador crê que, após a carta, a mulher conseguiu ser transferida para outra fazenda. Mairton encontrou documento que indicaria que uma mulher chamada Esperança era considerada liberta (crioula). “A representação de Esperança Garcia tem muito maior dinâmica com o presente. Esperança Garcia representa as mulheres negras de hoje, as mulheres quilombolas. Essa mulher é exatamente a representação máxima da luta contra as opressões”, avalia o professor piauiense.
O professor da UFPI reflete que Esperança firmou-se como sinônimo de bravura e de luta contra as desigualdades, incluindo as opressões que cercam essas mulheres marcadamente negras. Ele espera que seja cada vez mais divulgado nos livros didáticos em sala de aula sobre quem foi essa mulher que utilizou a palavra para não deixar passar o absurdo.
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